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Estrangeiro: sou eu, és tu, somos nós?

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Textos motivadores:

TOCATA E FUGA PARA O ESTRANGEIRO

 

Estrangeiro:   raiva estrangulada no fundo de minha garganta, anjo negro turvando a transparência, traço opaco, insondá­vel. Símbolo do ódio e do outro, o estrangeiro não é nem a vítima romântica de nossa preguiça habitual, nem o intruso responsável por todos os males da cidade. Nem a revelação a caminho, nem o adversário imediato a ser eliminado para pa­cificar o grupo. Estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruina a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia. Por reconhecê-lo em nós, poupamo-nos de ter que detestá-lo em si mesmo. Sintoma que torna o “nos” pre­cisamente problemático, talvez impossível, o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha diferença e termina quan­do nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos víncu­los e às comunidades.

O “estrangeiro”, que foi o “inimigo” nas sociedades pri­mitivas, pode desaparecer nas sociedades modernas? Lembra­remos alguns momentos da história ocidental onde o estran­geiro foi pensado, acolhido ou rejeitado, mas também onde a possibilidade de uma sociedade sem estrangeiros pôde ser cogitada no horizonte de uma religião ou de uma moral. Hoje coloca-se novamente a questão, ainda e talvez sempre utópi­ca, diante de uma integração econômica e política na escala do planeta: poderemos viver intimamente, subjetivamente, com os outros, viver os outros, sem ostracismo, mas também sem nivelamento? A modificação da condição dos estrangeiros, que atualmente se impõe, leva a refletir sobre a nossa capacidade de aceitar novas formas de alteridade. Nenhum “código de nacionalidade” poderia ser praticável sem a lenta maturação dessa questão em cada um de nós.

Inimigo a ser abatido nos grupos humanos mais selvagens, o estrangeiro, na esfera das concepções religiosas e morais, torna-se um homem diferente que, sob a condição de aderir a elas, pode ser comparado à aliança dos “sábios”, dos “jus­tos” ou dos “naturais”. No estoicismo, no judaísmo, no cris­tianismo e até no humanismo das Luzes, variam as figuras dessa aceitação que, apesar dos seus limites e dos seus defeitos, per­manece uma barreira séria contra a xenofobia. A violência do problema hoje colocado pelo estrangeiro provém, sem dúvi­da, das crises das concepções religiosas e morais. É causada, sobretudo, pelo fato de que a absorção do estranho proposta por nossas sociedades revela-se inaceitável para o indivíduo mo­derno, defensor de sua diferença, não somente nacional e éti­ca, mas essencialmente subjetiva, irredutível. Saído da revolu­ção burguesa, o nacionalismo tornou-se o sintoma, primeira­mente romântico, em seguida totalitário, dos séculos XIX e XX. Ora, se o nacionalismo se opõe às tendências universalistas (sejam elas religiosas ou racionalistas), dispondo-se a se­gregar e mesmo a perseguir o estrangeiro, nem por isso chega, por outras vias, ao individualismo particularista e intransigente do homem moderno. Mas talvez seja a partir da subversão desse individualismo moderno, a partir do momento em que o cidadão-indivíduo cessa de se considerar unido e glorioso pa­ra descobrir as suas incoerências e os seus abismos, em suma, as suas “estranhezas”, que a questão volta a se colocar: não mais a da acolhida do estrangeiro no interior de um sistema que o anula, mas a da coabitação desses estrangeiros que to­dos nós reconhecemos ser.

Não procurar fixar, coisificar a estranheza do estrangei­ro. Apenas tocá-la, roçá-la, sem lhe dar estrutura definitiva. Simplesmente esboçar o seu movimento perpétuo através de alguns rostos disparatados desfilando hoje sob nossos olhos, através de algumas de suas imagens antigas, mutantes, disper­sas na história. Tomar também mais leve essa estranheza, vol­tando a ela incessantemente -  mas cada vez de forma mais rápida. Fugir do seu ódio e do seu fardo, não pelo nivelamen­to e pelo esquecimento, mas pela retomada harmoniosa das diferenças que ela estabelece e propaga. Tocatas e Fugas: aos meus ouvidos, as peças de Bach evocam o sentido que eu gos­taria que fosse o atual da estranheza reconhecida e pungente, uma vez que transcendida, suavizada, disseminada, inscrita num jogo novo em formação, sem finalidade, sem limites, sem fim. Estranheza levemente tocada e que já vai se afastando.


Julia Kristeva - Estrangeiros para nós mesmos - 1994

Felicidade que se queima

 

Existem estrangeiros felizes?

          O  rosto do estrangeiro queima a felicidade.

Primeiramente, a sua singularidade impressiona: esses olhos, esses lábios, essas faces, essa pele diferente das outras o destacam e lembram que ali existe alguém. A diferença des­se rosto revela um paroxismo que qualquer rosto deveria reve­lar ao olhar atento: a inexistência da banalidade entre os seres humanos. Entretanto, é o banal, precisamente, que constitui uma identidade para os nossos hábitos diários. Porém esse dis­cernimento dos traços do estrangeiro, que nos cativa, ao mes­mo tempo nos atrai e repele: “Pelo menos, sou também — sin­gular e portanto devo amá-lo” diz para si o observador; “não, prefiro a minha própria singularidade e portanto devo matá-­lo”, pode ele concluir. Do amor ao ódio, o rosto do estrangei­ro nos força a manifestar a maneira secreta que temos de en­carar o mundo, de nos desfigurarmos todos, até nas comunidades mais familiares, mais fechadas.

Além do mais, esse rosto tão outro traz a marca de um limite transposto que se imprime, de modo irremediável, nu­ma calma ou numa inquietação. Seja ela perturbada ou ale­gre, a expressão do estrangeiro assinala que ele está “a mais". A presença de uma tal fronteira interna e visível desperta os nossos sentidos mais arcaicos através de um gosto de queima­do. Preocupação ou exaltação que se consomem pelo fogo, de­positadas ali naqueles traços diferentes, sem descuido, mas tam­bém sem ostentação, como um convite permanente a alguma viagem inacessível, exasperante, cujo código o estrangeiro não possui, mas cuja memória silenciosa, física, visível, ele guar­da. Não que o estrangeiro pareça necessariamente ausente, atordoado ou desvairado. Mas a insistência de um revestimento - bom ou mau, agradável ou mortífero -  perturba a imagem jamais uniforme de sua face e lhe imprime a marca ambígua de uma cicatriz  - o seu próprio bem-estar.

Pois, curiosamente, para além da perturbação, esse des­dobramento impõe ao outro, observador, a sensação de uma felicidade especial, um pouco insolente no estrangeiro. A feli­cidade parece transportá-lo, apesar de tudo, porque alguma coisa foi definitivamente ultrapassada: é uma felicidade do desenraizamento, do nomadismo, o espaço de um infinito pro­metido. Contudo, felicidade cabisbaixa, de uma discrição me­drosa, apesar de sua intrusão penetrante, pois o estrangeiro continua a se sentir ameaçado pelo território de outrora, tra­gado pela lembrança de uma felicidade ou de um desastre - sempre excessivos.

É possível ser estrangeiro e ser feliz? O estrangeiro susci­ta uma nova ideia de felicidade. Entre fuga e origem: um limi­te frágil, uma homeostase provisória. Assentada, presente, por vezes incontestável, essa felicidade, entretanto, sabe estar em trânsito, como o fogo que somente brilha porque consome. A felicidade estranha do estrangeiro é a de manter essa eternida­de em fuga ou esse transitório perpétuo.
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